Episodios

  • Ensino da língua portuguesa na Guiana Francesa é uma “necessidade”, diz professor
    Jul 18 2025
    A comunidade brasileira na Guiana Francesa é uma das mais expressivas. Segundo uma estimativa de 2022 do Ministério das Relações Exteriores, mais de 90 mil brasileiros vivem no território francês de 300 mil habitantes, que faz fronteira com o norte do Brasil. Proporcionalmente, isso significa que quase um em cada três moradores fala português. Essa realidade aumenta a “necessidade” de aprender o português no território, diz Rosuel Pereira, professor e pesquisador da Universidade da Guiana, responsável pelo departamento de inglês e português e vice-reitor de Relações Internacionais da instituição. Em entrevista à RFI em Caiena, Rosuel Pereira abordou a crescente importância do ensino e do domínio da língua portuguesa no território, especialmente devido ao aumento da população brasileira. A maioria desses imigrantes busca oportunidades de trabalho na Guiana Francesa, principalmente na construção civil e no garimpo. Eles vêm majoritariamente de três estados, Amapá, Pará e Maranhão, informa o professor e vice-reitor da Universidade da Guiana. Muitos imigrantes brasileiros são indocumentados. Por isso, é difícil saber com precisão o número exato de brasileiros no território francês. Mas ao andar pelas ruas de Caiena, por exemplo, é possível ouvir o português em cada esquina, revelando uma presença realmente prolífera. Desde a criação da Université de Cayene há cerca de 10 anos, o ensino do português vem se consolidando, com alunos não só brasileiros, mas também guianenses interessados em aprender o idioma. Segundo Rosuel Pereira, “há um interesse de aprender o português não somente dos filhos de brasileiros, mas também de guianenses que falam o português da rua, com colegas e amigos, e depois vêm aperfeiçoar na universidade”. O curso de português-língua estrangeira aplicada da universidade recebe 140 alunos por ano. A língua é também lecionada no ensino fundamental e médio. Além disso, o intercâmbio educacional entre o estado do Amapá e a Guiana tem impulsionado o ensino bilíngue, com classes de português em liceus na fronteira. Português nas instituições francesas A presença crescente de brasileiros na região exige profissionais capacitados para atender essa comunidade e essa realidade cria a “necessidade” de aprender o português no território francês, indica Rosuel Pereira. O professor, responsável pela licenciatura de inglês e português da Universidade da Guiana, diz que já foi procurado por várias instituições locais, como a polícia, hospitais e o sistema judiciário, visando capacitar seus funcionários. A taxa de criminalidade relacionada a atividades ilegais, como o garimpo ou o tráfico de drogas, está em alta, elevando o número de brasileiros também nas prisões da Guiana Francesa. Somente em um dos complexos penitenciários locais, o Remire-Montjoly, que tem mil presos para apenas 600 vagas, 15% dos detentos têm nacionalidade brasileira. “Já formamos profissionais ligados à alfândega, polícia, saúde e serviço social”, explica o professor, lembrando que há um esforço para que “esses profissionais possam estar em contato com brasileiros no dia a dia, seja para tratar de saúde ou questões judiciais”. Agora, universidade está desenvolvendo um diploma universitário voltado ao ensino prático do português. Vantagem profissional Falar português se tornou uma vantagem profissional significativa na Guiana Francesa, especialmente nos setores de comércio, saúde, segurança pública e serviços sociais. “Há uma necessidade de que pessoas formadas falem português e que possam servir também de intérpretes”, destaca o vice-reitor de Relações Internacionais. Com a imigração contínua e o desenvolvimento econômico da região, “é necessário acolher bem essas pessoas, para que elas possam se integrar à sociedade guianense”, salienta. Mas o interesse pelo português vai além da necessidade prática e envolve "tudo o que está ligado à cultura”. Cresce o interesse pelo estudo da variante “brasileira” falada no território. Palavras e expressões francesas foram incorporadas ao cotidiano dos imigrantes. Os brasileiros guianenses falam, por exemplo, “eu vou na vila”, para dizer que vão ao centro da cidade, aportuguesando o “centre-ville” francês. Eles dizem também que vão construir “uma casa tipo maison”, para indicar que querem uma casa grande. Ou ainda, uma festa que “termina à brasileira”, quer dizer, uma festa que termina em briga. Clique na imagem para ouvir a entrevista completa.
    Más Menos
    6 m
  • Marcos Yoshi trabalha memória e percalços da imigração dekassegui em novo documentário
    Jul 17 2025
    O cineasta e pesquisador Marcos Yoshi, doutor em Cinema pela USP, está desenvolvendo seu próximo longa-metragem documental, intitulado “Toshi Voltou do Japão”. O projeto foi apresentado durante um colóquio em junho em Lyon, no leste da França, que discutiu o cinema feito por nipo-brasileiros, as histórias de imigração e retorno entre o Japão e o Brasil. Patrícia Moribe, em Lyon “Toshi Voltou do Japão” é centrado na complexa trajetória de Toshi, tio paterno do diretor. Toshi imigrou para o Japão em 1990, como dekassegui [brasileiro descendente de japoneses que vai ao Japão para trabalhar, principalmente em fábricas]. Quatro anos depois, ele precisou retornar ao Brasil, relatando ter sido vigiado e perseguido. Segundo Marcos Yoshi, "muito da experiência que ele teve no Japão de isolamento social, de alienação, desencadeou os transtornos mentais que ele acabou tendo". Posteriormente, esses transtornos foram diagnosticados como esquizofrenia. Toshi viveu quase metade de sua vida sob o estigma de sua condição psíquica, com períodos de internação em hospitais psiquiátricos, falecendo em 2022, aos 60 anos. Marcos Yoshi explica que a memória que tem de seu tio é fragmentada: "as poucas memórias que as pessoas têm dele são restritas à família, às irmãs dele e ao meu pai". Essa escassez de lembranças o levou a uma reflexão central para o filme: "isso me levou a pensar que, no fundo, por conta dessa condição dele, ele acabou virando um fantasma. E o filme parte um pouco desse vazio e dessa ideia de que eu vou filmar o fantasma do meu tio". A questão principal do documentário, explica, é "como contar a história de alguém sobre quem se sabe tão pouco?". O projeto não se limita à história individual de Toshi, mas se expande para as experiências de outros homens nipo-brasileiros da mesma geração, que hoje teriam entre 60 e 70 anos. Yoshi aponta que esses homens, pertencentes à primeira geração de dekasseguis, não contavam com redes de apoio ou assistência organizada no Japão, o que os deixou sem auxílio diante das intensas condições de vida e pressão psicológica. "Nesse sentido, o fantasma de Toshi não é apenas individual, mas coletivo – uma representação das dores e apagamentos de uma geração de trabalhadores", afirma o cineasta. Para lidar com a ausência de material e a fragmentação da memória, o filme adota uma abordagem experimental, propondo "atos de fabulação e fantasmagoria". Outros Trabalhos A programação do colóquio em Lyon também incluiu a exibição de “Bem-vindos de Novo” (2021), o primeiro longa-metragem de Marcos Yoshi, um relato íntimo sobre seu núcleo familiar de pais e irmãs. Seus pais também foram para o Japão como dekasseguis em 1999, permanecendo por 13 anos, o que levou à separação da família, com os filhos ficando no Brasil. “Bem-vindos de Novo” aborda o reencontro familiar após o retorno dos pais ao Brasil e a necessidade de "lidar com as feridas, com os sentimentos que ficaram de certa forma abertos”, explica Yoshi. O diretor comenta que o filme "serviu para tentar criar outro tipo de relação entre pais e filhos, criar um espaço onde esses laços pudessem ser reconstruídos e ressignificados, sem que isso necessariamente signifique uma família feliz". A obra buscou ser ainda "um meio para que a gente conseguisse expressar os nossos sentimentos, para que a gente conseguisse conversar sobre assuntos que atravessam toda essa experiência". Cinema da reconstrução Apesar do recente destaque do cinema brasileiro em eventos internacionais, com premiações no Oscar e em Cannes, Marcos Yoshi aponta para desafios significativos na indústria nacional. Ele observa que "os fundos têm sido canalizados para grandes produções". "Está muito difícil financiar projetos que sejam, como no meu caso, projetos menores", afirma. Ele também destaca que linhas de fomento que existiam anteriormente no Fundo Setorial do Audiovisual, voltadas para cineastas em seus primeiros filmes ou para produções autorais/mercado internacional, "deixaram de existir e ainda não foram retomadas". O diretor descreve o cenário atual como um "momento de reconstrução" após uma "tentativa de destruição cultural no Brasil" nos últimos quatro anos. No entanto, ele ressalta a incerteza do mercado pós-pandemia, com o público se acostumando ao streaming e a menor frequência às salas de cinema: "As pessoas se acostumaram a ver filme em streaming, em casa, e não voltam mais às salas". Apesar das dificuldades, Yoshi mantém uma perspectiva otimista. "Existe essa dimensão incerta e difícil, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de sonhar com algo melhor."
    Más Menos
    5 m
  • "Construção, Desconstrução, Reconstrução": fotografia modernista brasileira é protagonista em Arles
    Jul 15 2025
    Uma ambiciosa exposição nos Encontros de Arles, na França, um dos principais festivais de fotografia do mundo, traz um olhar inédito sobre a fotografia modernista brasileira, com o título de “Construção, Desconstrução, Reconstrução (1939-1964)" e curadoria de Helouise Costa e Marcela Marer. Patrícia Moribe, enviada especial a Arles A mostra é destaque na mídia francesa e internacional. Muitos visitantes admitem que não conheciam a riqueza desse período, um olhar urbano correndo em paralelo com a metrópole paulista, visionária, de muito concreto. Uma aula de história e análise diante de 200 imagens vindas de quatro países e reunidas para esse inventário exposto na Mécanique Génerale, na Fundação Luma. O título da exposição, "Construção, Desconstrução, Reconstrução", foi inspirado na poesia concreta brasileira, contemporânea à produção dos fotógrafos em destaque. Ele se desdobra em três conceitos curatoriais que organizam a mostra em três salas distintas. “O primeiro circuito é construído em torno de uma certa modernidade, traçando um paralelo com a arquitetura que edifica e uma fotografia que busca vislumbrar um futuro promissor”, explica Heloise Costa, docente e conservadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), que estuda o período há muitos anos. A parte da desconstrução revela os bastidores da ideia de progresso, expondo as pessoas que, embora construíssem a cidade, estavam alheias aos benefícios dessa modernização. Já a reconstrução são as tentativas de experimentação, explorando novas formas e possibilidades visuais. Esforço curatorial de grande porte “É realmente uma exposição de caráter museológico e que envolveu uma pesquisa de 15 meses nossa e de muitos anos da Helouise”, relata Marcela Marer, curadora e pesquisadora, atualmente realizando um doutorado na Universidade de Zurique, na Suíça. “Não é simples você adentrar na obra de cada fotógrafo e depois procurar onde estão essas obras que a gente selecionou previamente, encontrar onde elas estão, quais são as coleções que elas fazem parte e, efetivamente, trazê-las para cá”, acrescenta. Costa e Marer recorreram frequentemente às famílias dos fotógrafos, encontrando negativos que foram escaneados e impressos novamente, além de muitas fotos de época que estavam em posse dessas famílias e de diversas instituições. Pioneirismo do Foto Cine Clube Bandeirante Os conceitos da exposição desvendam as especificidades da experiência modernista do Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), seus paradoxos e seu papel crucial na rede internacional de fotoclubes, ao mesmo tempo em que promovem uma reflexão crítica sobre o imaginário do Brasil moderno e as contradições de seu projeto de sociedade. A exposição utiliza a produção do FCCB como um prisma para explorar a fotografia modernista brasileira. Fundado em 1939 por um grupo de fotógrafos amadores no centro de São Paulo, o clube adotou inicialmente o pictorialismo. No entanto, acompanhando o crescimento e a verticalização da cidade, sua fotografia evoluiu, tornando-se cada vez mais moderna e inspirada nas vanguardas internacionais. A partir de 1945, nomes como Geraldo de Barros, German Lorca e Thomaz Farkas romperam com o pictorialismo, iniciando uma experimentação de caráter moderno que, a partir dos anos 50, seria reconhecida como a Escola Paulista de Fotografia. Essa escola, embora bem estabelecida na América Latina, é ainda pouco conhecida internacionalmente, e a exposição busca trazer esse esclarecimento inédito, redefinindo os contornos da história da fotografia moderna. Destaques e desafios da mulher na fotografia A exposição apresenta obras de trinta e três fotógrafos, incluindo importantes nomes do FCCB como Geraldo de Barros, German Lorca, Thomaz Farkas, José Oiticica Filho e Marcel Giró. Além disso, explora diálogos visuais com artistas precursores da arte neoconcreta brasileira, como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica. A participação feminina, embora não seja majoritária, é forte. Marcela Marer explica que, na época, as mulheres enfrentavam restrições significativas para fotografar em espaços públicos, necessitando de autorização do pai ou do marido. Apesar disso, muitas se associaram ao clube, frequentemente como esposas de fotógrafos, e começaram a fotografar, algumas atuando como assistentes de seus maridos. Nomes como Dulce Carneiro, Gertrudes Altschul e Palmira Giró se destacaram com uma produção consistente nesse período. "Construção, Desconstrução, Reconstrução" acontece no contexto da Temporada França Brasil 2025.
    Más Menos
    5 m
  • Sopranista brasileiro vai cantar em concerto do 14 de julho, um dos mais importantes da França
    Jul 12 2025

    O sopranista Bruno de Sá é dono de uma voz extraordinária e uma das figuras de maior destaque da cena lírica europeia contemporânea. Ele foi convidado para cantar no Concerto de Paris, um dos principais eventos de música clássica do mundo, que acontece desde 2012 no dia da festa nacional da França, o 14 de julho, aos pés da Torre Eiffel.

    Apesar de já ter cantado nos palcos mais célebres do mundo, o cantor brasileiro radicado em Berlim, na Alemanha, não esconde a emoção de participar do Concerto de Paris, que antecede a tradicional queima de fogos do dia 14 de julho, interpretando Bachianas Brasileiras n.5, de Villa Lobos.

    "É uma mistura de nervosismo, de ansiedade e, ao mesmo tempo, um senso de responsabilidade gigante", diz o sopranista que interpreta principalmente um repertório em italiano. "Cantar em português é muito raro para mim. Eu não canto tanto quanto eu gostaria. Vir com essa peça que é tão emblemática, nesse lugar icônico e em português, eu acho que vou ter que me segurar para não chorar", afirma.

    O contraste com seus primeiros passos na França é grande, relembra, contando os "perrengues" que passou na capital francesa, há dez anos. "A primeira vez que estive em Paris foi em 2015, enquanto estudante. Vim para cá falando um francês truncado, contando moeda para comprar um sanduíche, para conseguir fazer audição, e aí cheguei e a pianista não tinha ido tocar na audição. Foi um caos", relembra rindo."E aí, de repente, você se vê sendo um dos artistas convidados, junto com outros tantos artistas mundialmente reconhecidos", compara.

    O Concerto de Paris, um dos mais importantes eventos de música clássica do mundo, reúne dezenas de milhares de pessoas no Campo de Marte, aos pés da Torre Eiffel, e é transmitido ao vivo pela tevê e pela rádio em mais de 20 países. A 13ª edição conta com a participação das sopranos russa Aida Garifulina e francesa Julie Fuchs, da violinista sul-coreana Bomsori Kim, do pianista, também da Coreia do Sul, Saehyun Kim, entre outros artistas, acompanhados pela Orquestra Nacional da França e do Coro da Rádio França.

    "Eu realmente espero que, ao subir naquele palco, eu não esteja só, mas que seja toda uma nação", diz. "Porque acho que é um pouco esse o sentimento, de representar minha nação, de ser brasileiro, cantar em português e representar o Brasil. Porque ser brasileiro é motivo de orgulho", afirma.

    Voz fora do comum

    Bruno tem uma voz fora do comum. Ele é sopranista, um homem que canta soprano, voz tradicionalmente feminina. "Eu não sou contratenor, nem um barítono, ou seja, a minha voz, por obra divina, problemas hormonais ou caráter genético, não sei definir qual é a porcentagem de tudo isso, de alguma maneira, manteve o registro infantil, com um corpo de um homem adulto", explica.

    Grande parte do repertório do cantor se concentra no barroco, mas ele já interpretou obras de outros períodos.

    "Atualmente ainda existe quase que um condicionamento das pessoas acharem que se você é um sopranista, ou um contratenor, então você tem que cantar somente música barroca. E isso é um pouco da bandeira que eu venho tentando levantar", diz defendendo a ideia de que o artista não deve se fechar em ideias limitantes.

    "Eu acredito que a gente não deve limitar a produção artística de nenhum artista. No final das contas, eu sou um soprano. Qual seria o repertório de um soprano? Então é nesse lugar, dentro da minha trajetória e também de jornada, que fui abrindo caminho", diz Bruno, o primeiro homem soprano a cantar Wagner e também Bachianas Brasileiras.

    Mas ele admite que, no mundo conservador da ópera, ter uma voz fora da norma não é fácil.

    "Foi difícil e continua sendo difícil", diz. "Meu sonho, honestamente, é chegar um dia onde a gente seja selecionado para um casting, não porque sou a excentricidade, não porque eu sou um homem que tem uma voz aguda. Eu acho que o meu grande sonho seria ser selecionado para uma produção, seja barroca, contemporânea, independente de qual seja o personagem, pelo que eu, enquanto artista, posso comunicar", diz.

    Más Menos
    8 m
  • Emílio Kalil: “Prazo apertado foi maior desafio para produzir Temporada França Brasil 2025"
    Jul 11 2025

    Sob o sol festivo do sul da França, o Brasil é destaque na programação dos Encontros de Arles, um dos maiores eventos internacionais em torno da fotografia. O país está presente em quatro grandes exposições oficiais, além de muitas manifestações no circuito OFF. O contexto é o da Temporada França Brasil 2025. Emilio Kalil, comissário geral da programação brasileira, conversou com a RFI em Arles.

    Patrícia Moribe, enviada especial a Arles

    No total são cerca de 300 exposições e eventos em toda a França. A programação foi concebida por Kalil em torno de três eixos fundamentais: o meio ambiente, a diversidade e a democracia. Ele explica que os temas foram definidos em 2023 pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron, servindo como guias para a construção da temporada. Além desses, um quarto eixo crucial para a curadoria brasileira é a relação entre a França, o Brasil e a África, uma conexão que Kalil considera "muito forte" e essencial na programação.

    “É uma honra muito grande, mas uma complicação também maior ainda, porque você precisa representar um país enorme, complexo, como o nosso, como o Brasil, e fazer dele uma mostra que o francês, já que é na França, tenha uma ideia diferente, nova e desconhecida desse país que a gente sabe que é continental, que é enorme, que tem uma diversidade, que começa em Belém, terminando no Chuí”, explica Kalil.

    Além da magnitude da missão, a equipe de Emilio Kalil enfrentou um cronograma "extremamente apertado", tendo "quase um ano" ou "menos de um ano" para montar toda a programação, o que Kalil descreveu como "quase um milagre". Os principais desafios incluíram a necessidade de pesquisar e selecionar o conteúdo em um período muito curto, acoplado à dificuldade de encontrar instituições na França dispostas a receber as exposições e eventos em cima da hora, já que a maioria já tinha suas agendas fechadas. A questão orçamentária foi outro "imenso" desafio, com o financiamento sendo definido de "última hora" e sofrendo cortes tanto no Brasil, quanto na França.

    Contatos na França

    Para contornar esses obstáculos, Kalil mobilizou sua extensa rede de contatos e anos de trabalho com a França, especialmente nas artes cênicas, o que ajudou a "abrir portas" e gerar uma "cumplicidade enorme" entre franceses e brasileiros. Essa rede de contatos foi fundamental para conseguir que instituições de primeira linha na França acolhessem a programação, incluindo o Museu Picasso, o Museu do Quai Branly, o Museu d'Orsay, o Centro Pompidou, o Carreau du Temple em Nîmes e outros enderenços de prestígio. A temporada também se estende a outras cidades como Nantes, Lille e Lyon.

    A curadoria de Kalil priorizou o conteúdo cultural e educacional, promovendo debates sobre democracia e desinformação, debatendo a questão indígena, e abordando a identidade negra. Em Arles, por exemplo, estão presentes a histórica fotografia modernista forjada a partir de São Paulo, passando por retratistas populares de uma comunidade perto de Belo Horizonte, artistas emergentes e um mergulho místico no candomblé por meio de um jovem fotógrafo neto de mãe de santo.

    Projetos cruzados

    Além disso, a temporada se destaca pelos mais de 40 "projetos cruzados", desenvolvidos em colaboração entre o comissário brasileiro - Emilio Kalil - e a francesa - Anne Louyot. Esses projetos são iniciados no Brasil e depois seguem para a França, ou vice-versa, representando um esforço conjunto e um trabalho "a quatro mãos", explica Kalil.

    O comissário é também o diretor da Fundação Iberê em Porto Alegre, para onde retornará de forma mais assídua após a temporada. Ele planeja levar para a instituição dois importantes segmentos desta temporada: uma mostra do artista franco-palestino Tarik Kiswanson, vencedor de um prêmio no Centre Pompidou, que será inaugurada em 29 de agosto em Porto Alegre, e a exposição sobre Antônio José da Silva, um "grande pintor clássico primitivo brasileiro", que atualmente está em Grenoble e seguirá diretamente para Porto Alegre antes de ir para o MAC da USP em São Paulo.

    Más Menos
    6 m
  • 'Azira’i' emociona Avignon com ancestralidade, canto e resistência indígena do Brasil
    Jul 10 2025

    Na mostra paralela do Festival de Avignon de 2025, um espetáculo brasileiro vem arrebatando os franceses com sua força e poética ancestrais: Azira’i – Um Musical de Memórias, estrelado por Zahy Tentehar, do povo Tentehara Guajajara, e dirigido por Duda Rios. Em cena, a memória de Azira’i, mãe da atriz, ganha vida através da dramaturgia, do canto indígena e de uma linguagem cênica que ultrapassa fronteiras.

    Márcia Bechara, enviada especial a Avignon

    Zahy Tentehar se tornou a primeira atriz indígena a receber o Prêmio Shell, uma das maiores condecorações do teatro brasileiro. A obra, que agora ecoa no sul da França, nasceu de uma escuta profunda e de uma amizade transformadora.

    “Essa ideia nasceu quando nos conhecemos em uma peça. Conversando com Zahy, ela compartilhou a história da mãe dela. Aquilo me tocou profundamente”, contou o diretor Duda Rios. “Cinco anos depois, conseguimos o financiamento e criamos o espetáculo.”

    Leia tambémTeatro brasileiro é homenageado no Festival de Avignon, o maior evento de artes cênicas do mundo

    No palco, Zahy está sozinha, "mas nunca solitária". Segundo ela, a presença da mãe, dos antepassados e de muitos povos reverbera em cada gesto, cada canto. “O palco está repleto de todo um povo, de muitas línguas. Eu não sinto em nenhum momento que estou sozinha”, afirma com convicção.

    Um dos aspectos mais potentes da montagem é o uso da língua Ze’eng eté, falada por seu povo. Em um país que, como ressalta o diretor Duda Rios, "foi historicamente colonizador, como a França", "o gesto de ensinar e compartilhar uma língua indígena carrega forte carga simbólica e política".

    “Trazer uma língua tão desconhecida internacionalmente, ensinar sua fonética e gramática à plateia, é uma inversão de papeis feita com suavidade”, observa Rios. “Convido as pessoas a experimentarem a estrutura do Ze’eng eté com afeto, não com imposição", completa a atriz Zahy Tentehar.

    Canto ancestral

    O canto herdado da mãe de Zahy é o eixo central da construção emocional e dramatúrgica do espetáculo. “Antes mesmo de ensaiar ou entrar no palco, eu tenho o hábito de cantar. Cantar me ajuda a ter ideias, a me concentrar. Para mim, é um lugar sagrado.”

    A recepção do público francês tem sido calorosa, embora reveladora de particularidades. “Eles se emocionam muito. Embora riam menos do que o público brasileiro, sentimos uma conexão genuína”, afirma Duda. “O espetáculo foi escrito para o Brasil, mas chega com a mesma potência aqui.”

    "Em cena, Zahy representa também um movimento de quebra de padrões estéticos e educacionais. Sem ter passado por uma escola tradicional de formação de atores, ela ocupa com autoridade e brilho o palco internacional", diz o diretor. “É muito satisfatório poder dizer que nós também somos criadores. Por muito tempo, nos impediram de estar aqui.”

    Leia também'Falar com os mortos é uma das bases do teatro', diz Milo Rau ao estrear peça-manifesto em Avignon

    Com legendas em francês e inglês, a peça preserva os trechos em Ze’eng eté sem tradução — uma escolha consciente que convida o público a sentir a língua pelo corpo, não apenas compreendê-la pela lógica.

    Azira’i – Um Musical de Memórias é mais que um espetáculo: é um reencontro com saberes ancestrais, uma afirmação estética e uma delicada insurgência que reverbera além das bordas do palco. A peça fica em cartaz até o dia 13 de julho no teatro Manufacture, na mostra paralela do Festival de Avignon de 2025.

    Más Menos
    6 m
  • Cia brasileira traz materialidade radical do teatro em diálogo com a pornografia para Avignon
    Jul 9 2025
    A RFI conversou com a encenadora brasileira Janaina Leite, que traz para esta 79ª edição do Festival de Avignon História do Olho. Livremente inspirado no texto original do francês Georges Bataille, a obra é um dos espetáculos mais provocadores e iconoclastas da temporada brasileira homenageada na mostra paralela de 2025. Numa cena ocupada por 16 performers, o espetáculo constrói um diálogo ousado entre teatro e pornografia, desejo e morte, humor e transcendência. Márcia Bechara, enviada especial a Avignon Com uma trajetória marcada por investigações sobre o corpo, a performatividade e os limites entre realidade e ficção, Janaína Leite leva ao palco uma encenação que desafia convenções estéticas e morais. “A pornografia cruza uma dimensão estética e ética que me apaixona”, afirma a diretora. “Ela não é apenas repetição de corpos — é também criação de corpos. É um território de invenção, de disputa de narrativas e de imaginário.” Na versão original brasileira, o espetáculo incluía um entreato musical em que o público circulava, bebia e assistia a outras cenas. No entanto, essa parte foi retirada para a apresentação em Avignon. Ainda assim, a dimensão musical permanece como um elemento essencial da obra. “Ela traz uma dimensão paródica, que é muito cara ao Bataille — uma alegria quase ingênua, mesmo no contato com a dor e com a morte. As músicas brincam com o interdito de forma quase infantil. Tenho dois filhos que adoram falar ‘cocô’, ‘xixi’... e isso também está na peça, como uma forma de trazer à boca o que é proibido.” Leia também'Falar com os mortos é uma das bases do teatro', diz Milo Rau ao estrear peça-manifesto em Avignon "Horrível e sublime" A encenação inclui práticas extremas como fisting e suspensão corporal, e navega entre o sublime e o grotesco. “Bataille trabalha essas tensões extremas entre o corpo que apodrece, que goza, e o desconhecido, o cósmico, o belo. Ele é capaz de falar do horror e do sublime ao mesmo tempo. E você não sabe mais se está sentindo repulsa ou fascínio”, diz a diretora. “Isso tem muito a ver com o desejo, onde atração e repulsa são ambíguas.” Para Janaína, o teatro é um território híbrido, que carrega em sua origem práticas rituais. “Como trazer para o teatro de hoje uma materialidade radical? Como se, no passado, sacrificássemos um animal ou um corpo humano para oferecer ao sol — como numa arena. Essa imagem me fascina. E ela se conecta com o trabalho dos performers, que fazem uma cena de suspensão corporal e lidam, todos os dias, com uma pele que será perfurada, costurada depois.” A trilha sonora foi criada por André Medeiros Martins, Ultra Martini, Vini Vinithekid e Renato Navarro, que, segundo a diretora, foram fundamentais para a construção do espetáculo. “Eles criaram esse show dentro da peça. Tivemos que reduzir a duração de 2h50 para 2 horas por conta da coabitação de cena, mas o show cumpre essa passagem entre o cósmico e o vulgar, entre o intelectual e o bobo, talvez até o inocente.” Leia tambémTeatro brasileiro é homenageado no Festival de Avignon, o maior evento de artes cênicas do mundo Recepção do público europeu A recepção do público europeu tem sido diversa — e, para a diretora, isso é parte do processo. “Viemos de uma cena em São Paulo muito habituada à minha pesquisa. Aqui, talvez o olhar seja mais curioso, mais reticente. Mas não temos nenhuma intenção de chocar. É um convite afetuoso para pensar o corpo — e esses corpos.” A companhia já havia se apresentado na Alemanha, em Heidelberg, onde, segundo Janaína, viveu uma das experiências mais marcantes com a peça. “Foram 400 pessoas com a gente por três horas. Foi uma das apresentações mais maravilhosas que já fizemos", relembra. Em Avignon, a primeira apresentação foi “maravilhosa”, a segunda “mais difícil”. Mas a diretora vê nisso uma oportunidade: “Talvez a gente não tenha há algum tempo essa chance de sair de um certo consenso e ouvir, sentir reações inesperadas. Isso é precioso.” Com uma equipe de 23 pessoas, sendo 16 em cena, a companhia brasileira celebra a oportunidade de apresentar seu trabalho em um dos maiores festivais de teatro do mundo. “Está sendo um grande acontecimento cruzar o oceano e apresentar esse trabalho aqui. Ainda faltam seis apresentações, e estamos curiosos para ver como tudo vai se encaminhar”, conclui. * Para ver a entrevista completa com a diretora Janaína Leite, clique na imagem principal deste texto
    Más Menos
    6 m
  • Anti-heroína de Dostoiévski, 'Nastácia' ocupa Avignon: um clássico russo atravessado pelo Brasil
    Jul 8 2025
    Durante mais de um século, ela foi reduzida a coadjuvante nas leituras tradicionais de O Idiota, clássico de Fiódor Dostoiévski. Mulher marcada pela tragédia, vilanizada ou santificada à força, Nastácia permaneceu silenciada — até agora. No palco da mostra paralela do Festival de Avignon de 2025, ela retorna com voz própria, arrebatadora, no espetáculo brasileiro Nastácia, a partir de uma ideia original da atriz Flávia Pyramo, através da encenação meticulosa — e premiada — de Miwa Yanagizawa. Márcia Bechara, enviada especial a Avignon Poucos personagens femininos da literatura russa são tão intensos, incômodos e desconcertantes quanto Nastácia Filíppovna Baráchkova, a mulher em torno da qual gira a tragédia de O Idiota, romance publicado por Fiódor Dostoiévski em 1869. Lida por muito tempo como uma figura secundária — quase um “obstáculo” no percurso do príncipe Míchkin, protagonista da obra — ela emerge, em releituras contemporâneas, como o verdadeiro coração pulsante do livro: uma mulher que diz não. Não ao perdão. Não ao amor. Não à paz. Sobretudo, não aos papéis impostos a ela pela sociedade e pelos homens. Sua rebelião poderia se irmanar à de figuras arquetípicas como Antígona, Medéia ou Lilith — mulheres que só puderam ser caladas pela morte. Nastácia não está louca: está em fúria. E Dostoiévski, ainda que sem compreendê-la inteiramente, a conserva intacta em sua raiva. Esse é, talvez, o maior paradoxo de seu gênio. Nastácia Filíppovna (interpretada visceralmente por Flávia Pyramo, idealizadora do projeto) não é uma heroína. É uma ferida aberta. Bela demais, intensa demais, lúcida demais, ela carrega o estigma de uma juventude arruinada: seduzida e abusada por Tótski (vivido no palco pelo ator Chico Pelúcio, veterano e um dos fundadores do Grupo Galpão), um aristocrata que a “acolhe” para, na verdade, possuí-la, ela entra na vida adulta com a reputação destruída e um destino traçado. Espera-se que ela se arrependa, que peça perdão, que aceite seu lugar. Ela recusa. Completa o trio da montagem brasileira a submissão oportunista de Gánia, pretendente de Nastácia, que aceita se casar com ela por conveniência e influência de Tótski, vivido com precisão e humor pelo ator Lenine Martins. Não muito longe do teatro onde a companhia brasileira encena o espetáculo, um caso que chocou a França foi julgado: a história terrível dos abusos perpetrados contra Gisèle Pélicot, francesa drogada pelo marido durante décadas e estuprada repetidamente por estranhos. Em uma homenagem extraordinária neste ano, o Festival de Avignon — dirigido por Tiago Rodrigues — fará uma reencenação do processo de Pélicot com um grupo de atores, intitulada Le Procès Pélicot (O Processo Pélicot), no dia 18 de julho. "Nastácia passa por todos os abusos imagináveis e inimagináveis que nós, mulheres, conhecemos — do século 19 até hoje. Inclusive, a gente cita o nome de Gisèle na peça, quando fala de tantas outras mulheres [abusadas], desde Desdêmona até a adolescente da vida real que inspirou Dostoiévski a compor a personagem Nastácia", conta Flávia Pyramo. "É impressionante ver [no texto do autor russo] essa figura, esse ser, naquela época... Porque hoje ainda, fazendo a peça, ela aparece tão avante [de seu tempo], nessa luta e, principalmente, nessa consciência da dignidade", pontua a atriz. Com texto de Pedro Brício e direção artística de Miwa Yanagizawa, o espetáculo transcende a literatura clássica para dialogar diretamente com os conflitos atuais: o feminicídio, a banalização da violência, o apagamento histórico das mulheres. Leia tambémThomas Ostermeier discute 'verdade' como ruptura em tragédia de Ibsen no Festival de Avignon Misoginia estrutural A peça não traz apenas uma releitura inovadora, mas também uma denúncia. A obra de Dostoiévski — assim como boa parte do cânone russo do século 19 — é atravessada por uma misoginia estrutural. As personagens femininas são constantemente condenadas a papéis de martírio, servidão ou loucura. Sonia, em Crime e Castigo, é a prostituta redentora. Grushenka, em Os Irmãos Karamázov, é a femme fatale manipuladora. Em quase todos os casos, a mulher é um instrumento — seja de punição ou de purificação masculina. Nastácia Filippovna rompe esse destino. Ela não se arrepende, não se redime, não ama para ser perdoada. Ela denuncia. Sabota. Sobrevive, especialmente em sua versão brasileira. No lugar da doçura trágica de Míchkin, é a lucidez cortante de Nastácia que conduz a narrativa. Ela não é mais coadjuvante. É o centro nervoso do drama, a ferida exposta de uma sociedade que transforma desejo em punição. Vencedora de diversos prêmios — entre eles o Shell, o APTR e o Cesgranrio —, a montagem brasileira se impõe como um "ato poético e político". Lucidez brutal No centro de sua trajetória ...
    Más Menos
    6 m